Doutores Autismo: um perigoso (e lucrativo) mercado | Opinião | Adriana Torres

Doutores Autismo: um perigoso (e lucrativo) mercado | Opinião | Adriana Torres

Adriana e Leon sorrindo. Em baixo, o símbolo da neurodiversidade e as palavras "18 de junho - dia do orgulho autista - #orgulhoautista"

Adriana Torres é formada em administração com ênfase em marketing e trabalhou cerca de vinte anos nas áreas comercial e de comunicação. É ativista pelos direitos humanos há mais de dez anos, mãe de um garoto autista e vem descobrindo, aos poucos, suas próprias características autistas. Integrante da ABRAÇA, é também membro do grupo Autismo em Evidências e administradora da página Comunicando Direito no facebook.

Um dos assuntos mais comentados das últimas semanas no facebook e no twitter foi a prisão do médico Denis Furtado, conhecido como “Dr. Bumbum” nas redes sociais, acusado de provocar a morte de uma paciente.

Reportagens mostraram que o médico mentia sobre seu currículo, não tinha especialização na área que atuava e realizava os procedimentos em seu próprio apartamento. Infelizmente, a legislação brasileira não impede que o médico atue em áreas diversas, só não podendo se apresentar como especialista de algo que não é realmente.

Para quem conhece há mais tempo o universo do autismo, casos como esses são diversos. Existem hoje dezenas ou mais de “especialistas” em autismo que, se procurarmos a Lattes (plataforma que padroniza currículos acadêmicos no país) dos mesmos, ou não constam lá com o currículo ou o mesmo não apresenta a formação na qual pretendem atuar.

Como a sociedade, em geral, desconhece o que é o autismo e suas origens genéticas, esses indivíduos utilizam da boa fé, da ignorância e do desespero de pais e mães para venderem produtos “milagrosos” ou receitas perfeitas para “curar” a condição – como se existisse cura para um cérebro neurodiverso, como se um cérebro neurodiverso precisasse de cura.

Uma profusão de barbaridades e desinformações são disseminadas pelas redes, em textos e vídeos, e, assim, encontramos crianças – muitas vezes não oralizadas, sem condições de se defenderem ou de pedirem ajuda – sendo forçadas a tratamentos degradantes como um protocolo que usa ALVEJANTE INDUSTRIAL via enema para “tratar vermes intestinais que inflamariam o cérebro”; outras, sem qualquer sintoma de alergia ou intolerância, com seletividade alimentar (comum em muitos autistas devido à hipo ou hipersensibilidade sensorial) sendo obrigadas a dietas sem carboidratos, glúten, caseína, açúcar, por pura invencionce, sem qualquer evidência científica.

Mulheres estão deixando de tomar o ácido fólico na gravidez, por medo de causar autismo, sem compreenderem que, além de não ter qualquer estudo conclusivo sobre o tema, podem colocar em risco seus futuros filhos. Outras estão sendo aconselhadas por médicos inconsequentes a abandonarem o aleitamento materno e utilizarem uma fórmula caríssima, sem embasamento científico, para “evitar todo e qualquer potencial alergênico”. Sem falar de mãe de autista sendo aconselhada a não amamentar o segundo filho, pela ingestão de antibióticos que ela tomou na vida.

Diversos indivíduos estão deixando de vacinar seus filhos, também por conta de um mito já desmascarado faz décadas, e por estudos inconclusivos posteriores, com medo deles “se tornarem autistas”.  Isso sem falar do glifosato, do café, dos produtos de limpeza da casa, dos produtos industrializados, da poluição, da lua cheia, da vitamina D… pensando bem, a humanidade já deveria ser toda autista, pois apenas um ou dois itens dessa quase infinita lista já daria para “causar” autismo na sociedade!

Eu não culpo pais e mães que caem nessas ciladas, assim como não culpo as mulheres que foram vítimas do “Dr. Bumbum”. Todas e todos são vítimas do capacitismo da nossa sociedade, que naturalizou em nós a ideia de que existe um corpo padrão,  uma mente perfeita, uma forma correta de ser e de estar no mundo.

Eu julgo e luto contra esse sistema, capacitista, machista, lgbtfóbico, racista, classista e psicofóbico, que teima em subjugar a maioria quantitativa – transformando-as em minorias quanto à discriminação que sofrem – e privilegiar uma elite dominante que, arbitrariamente, se colocou como esse “padrão” a ser aceito e seguido por todos.

É preciso desmascarar esses “especialistas”, para que não prejudiquem mais nenhuma família, nenhum autista e denunciarmos às autoridades competentes. E, acima de tudo, é preciso disseminar conhecimento a respeito do autismo, de sua origem genética, de suas particularidades e do imenso potencial que cada autista tem dentro de si. Autismo não é doença, autismo é uma deficiência, no sentido de termos uma sociedade que impõe barreiras (físicas e atitudinais) para que autistas possam ter acesso aos seus direitos. É preciso ter paciência para desmontar, cientificamente, cada mito, cada novo “tratamento alternativo” – e isso não é nada fácil.

Atenção: uma alimentação saudável, equilibrada, um acompanhamento médico preventivo e cuidadoso, o privilégio de ares mais puros e uma vida em contato com a natureza são “fórmulas” excelentes para qualquer ser humano, autista ou não. Só que isso não cura nem trata o autismo, até porque, autismo não precisa de cura. As únicas coisas que precisam ser curadas, nessa história toda, são o preconceito e a desinformação. E é por isso que estamos aqui, para mostrar a responsabilidade de toda a sociedade e que sim, existe muita beleza na diversidade.

AVISO: Artigos de opinião aqui publicados são de única e exclusiva responsabilidade de seus respectivos autores. Os posicionamentos da ABRAÇA são tomados coletivamente e postados na categoria ‘MANIFESTOS’.