02 jul Nota sobre Coleta de Dados Desagregados, o Autismo e o Censo
De acordo com o Art. 31 da Convenção Internacional pelos Direitos das Pessoas com Deficiência (no Brasil, Decreto 6.949/2009), é direito da população de Pessoas com Deficiência a coleta de dados desagregados e apropriados, inclusive estatísticos e de pesquisa, que mais tarde devem servir de base para a implementação da CDPD a nível nacional. Esses dados devem ser utilizados para avaliar o cumprimento das obrigações do próprio Estado em relação à CDPD e para identificar as barreiras com as quais as pessoas com deficiência se deparam no exercício de seus direitos.
De acordo com o mesmo artigo, os Estados que ratificaram a Convenção (lista na qual o Brasil se inclui desde 2008) têm ainda a obrigação de disseminar as referidas estatísticas de forma acessível para todos, incluindo para as próprias pessoas com deficiência.
Desde 2010, temos a presença de três perguntas do questionário curto do Washington Group no nosso Censo Demográfico, aquele que acontece a cada 10 anos. O Washington Group é atualmente referência mundial quanto à coleta de dados a respeito da Deficiência e tem guiado o levantamento de dados nessa área em muitos países. O questionário curto é composto por 6 perguntas, usamos três e outras três ficaram de fora – uma sobre cognição, outra sobre cuidados pessoais e a última sobre comunicação.
Adicionalmente, tivemos a manutenção da questão sobre deficiência intelectual e mental que já tinha sido utilizada no Censo 2000 e que segue uma metodologia completamente divergente das do Washington Group, e através da qual boa parte da comunidade autista não é contabilizada como pessoa com deficiência. A forma como a pergunta aborda a questão é insatisfatória e resulta em uma subnotificação da população de pessoas desses dois grupos – deficiências intelectuais e mentais – que poderiam, por sua vez, incluir o grupo das pessoas autistas total ou parcialmente.
A terminologia deficiência mental, hoje, no Brasil, tem interpretação ambígua, e a presença desse termo no processo de coleta de dados é também problemático. Não está claro se ele faz referência às próprias pessoas com deficiência intelectual (como nos termos do Decreto nº 3.298/1999) ou se faz referência a pessoas com impedimentos mentais (nos termos da CDPD, hoje chamadas de pessoas com deficiência psicossocial). Também não está claro onde entra o Autismo, se é que está sendo contabilizado de alguma forma.
Já no Censo 2020, conforme prévia divulgada pelo IBGE em 01/07/2019, teremos 5 perguntas sobre deficiência, as mesmas três do Washington Group que estavam presentes no Censo anterior, mais duas, uma delas (sobre mobilidade nos membros superiores) proveniente do questionário ampliado do Washington Group, e a última sobre “funções mentais”, que de certa forma segue parâmetros similares às perguntas anteriores, mas que não provém dos questionários do Washington Group.
Essa última pergunta é tecnicamente muito mais adequada que a pergunta sobre deficiências intelectuais ou mentais presente no Censo 2010, e poderia contabilizar uma grande parte do nosso grupo, mas ainda não é o ideal. Ainda associa as deficiências em questão com uma terminologia ligada a estigma social, o que pode desencorajar respostas positivas, e agrupa dois tipos de deficiência bastante distintos – as deficiências intelectuais e as deficiências psicossociais. Embora pessoas autistas possam se encaixar em ambos os grupos, isso não acontece com a maioria das outras condições que compõem esses grupos, o que dificulta que esses dados embasem programas e políticas públicas concretas.
Para uma compreensão mais profunda das deficiências em um país, uma das estratégias mais eficientes é a de executar um Censo exclusivamente sobre Deficiência, que levante dados desagregados em diferentes localidades e contextos. Não temos hoje nenhuma perspectiva nesse sentido.
Tivemos, no entanto, lá na Lei Brasileira da Inclusão (2015), a proposta de um levantamento mediante o que foi chamado de Cadastro Nacional de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Cadastro-Inclusão). Até o presente momento, essa ideia não foi regulamentada nem posta em prática. Sem esse instrumento, voltamos novamente nossas atenções para as alternativas tradicionais: os censos e as pesquisas.
Assim como acontece com todos os grupos de pessoas com deficiência, o Movimento Autista deseja ter o dado de quantas pessoas autistas temos no Brasil hoje. Parte do Movimento tem se mobilizado no sentido de inserir perguntas no Censo Demográfico, que acontece a cada 10 anos, com o próximo no ano que vem, 2020. Além do Censo Demográfico, temos também a possibilidade de coletar dados a respeito de deficiências na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), no Censo SUAS (Assistência Social), no Censo Escolar do INEP e na Pesquisa Nacional da Saúde (PNS).
Note-se, no entanto, que dados provenientes desses censos e pesquisas, hoje, seriam certamente uma subnotificação dos números reais, uma vez que o acesso ao diagnóstico de Autismo ainda é muito baixo no Brasil – muitas pessoas autistas ainda vivem a vida toda sem saber que são autistas, seja sob um diagnóstico incorreto (bipolar, borderline, depressão, deficiência intelectual ou retardo mental sem especificação, “deficiência mental” etc.), seja sem nenhum diagnóstico e consequentemente sem acesso a nenhum dos serviços aos quais essa pessoa teria direito. Por conta disso, esses números necessariamente teriam de ser interpretados como sendo relativos a pessoas com diagnóstico de autismo, seja esse um diagnóstico médico, oficial, ou por autoidentificação, e não um número efetivo de pessoas autistas vivendo no Brasil.
Para pôr em prática tais levantamentos, seria importante termos uma terminologia fixa para esses indicadores, que poderia ser a terminologia da Lei 12.764/2012 (“Transtorno do Espectro Autista”) ou algum outro termo convencionado, como “Autismo”, por exemplo. Além da divulgação dos microdados desagregados, a divulgação dos dados relativos ao Autismo, de forma agregada, em um relatório acessível e de fácil compreensão, cruzados com idade, escolaridade, saúde, renda, gênero, cor/etnia, entre outros, seria fundamental para garantir o acesso da população a essas informações. Já temos, hoje, o levantamento de informação em algumas dessas pesquisas, ainda que bem limitada, mas essa informação não foi divulgada amplamente como deveria.
Outra coisa importante seria a criação de um Grupo de Trabalho para discutir a metodologia de como esses dados serão levantados. No Censo Demográfico, por exemplo, que já adota a metodologia do Washington Group, ter uma pergunta muito divergente poderia não ser nada interessante. Essa é uma questão técnica a se discutir com especialistas em levantamento de dados e com a participação de pessoas autistas por meio de suas organizações representativas.
Nesse sentido, a Abraça afirma seu interesse em fazer parte das discussões a respeito desse tema, com o objetivo de cooperar no sentido de alcançarmos maior precisão na coleta de dados estatísticos sobre nós, as pessoas autistas, e as barreiras com as quais interagimos no nosso país.