A identidade autista é mais que um rótulo | Opinião | Miguel Souza

A identidade autista é mais que um rótulo | Opinião | Miguel Souza

Miguel Souza sorrindo

Miguel Souza é autista, estudante de Psicologia, estagiário de Psicologia na Casa da Esperança, ativista pela neurodiversidade, membro da ABRAÇA (Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas com Autismo) e coordenador do grupo de autistas Neurodiversos.

Nos campos de autismo pela internet, tenho lido muitos relatos de pais e mães com medo de revelarem ao público que seu filho ou filha é autista. Oras, alguns até mesmo escondem do próprio filho a sua própria condição, na tentativa de protege-los dos males do preconceito. Já vi também, pessoalmente, um caso de uma adolescente que pediu para a escola revelar à turma que ela é autista, e a escola recusou fazer a ação, com medo de ela sofrer bullying por ser autista.

Tá, eu entendo o medo dessas pessoas. Entendo o medo que os pais sentem de que os filhos sejam estigmatizados e maltratados, e tentem deixá-los salvos das situações desconfortáveis do cotidiano. Compreendo o medo de sofrer bullying, e que esse tipo de abuso é horrível para uma pessoa que sofre isso. Sei que, às vezes, esconder parte da identidade da pessoa pode parecer o caminho mais seguro a seguir. E vou ser bem sincera… posso parecer uma pessoa “empoderada” com todo esse ativismo, mas eu também não sou lá uma pessoa cheia de segurança com minha identidade autista, não. Bote terapia em toda essa situação louca de vida de ativista, com a qual eu ainda estou aprendendo a lidar.

O questionamento que estou tentando fazer é se esse é mesmo o melhor caminho a seguir. Será que vale a pena ensinar à pessoa a esconder quem ela é, e a ter vergonha de uma grande parte da sua identidade? É digno ensinar alguém que essa identidade é tão feia que deve ser escondida dos demais?

Como fica a autoestima dessa pessoa ao longo da vida? Será que ela vai ser uma pessoa segura nas suas decisões, e assertiva na sua posição em relação aos outros? E quanto à construção da sua autoimagem? Se todo mundo diz que essa parte minha é motivo de vergonha, então como eu vou enxergar a mim mesma ao longo da minha vida? Será que terei uma imagem positiva de mim mesma, ou terei uma imagem de que eu sou inútil, sou um fardo para todos ao meu redor, e que não deveria nem existir?

Será que vale mesmo a pena submeter a pessoa a esse tipo de autodestruição?

“Ah, mas se ficar rotulando alguém de autista, a pessoa vai sofrer bullying e preconceito por isso! Temos que escapar dos rótulos, e lutar contra a patologização da infância”

Vou contar uma historinha. A minha história, para ser mais clara. Desde bem cedo na infância, sempre me achei diferente das pessoas, e tive dificuldade de atingir alguns marcos do desenvolvimento. Sofri bullying, inclusive com agressão física, que me fez ter que mudar de escola em certo ponto. Sempre me achei lerda, burra, inútil, retardada, dentre inúmeros outros rótulos. Mas o rótulo de autista só me foi revelado oficialmente aos 21 anos. Passei duas décadas me rotulando de qualquer outra forma pejorativa, me afundando na fobia social e fugindo das pessoas por me achar um fardo pra todo mundo.

Veja bem: eu só fui me descobrir autista na vida adulta. Isso NÃO me livrou de ser rotulada, de ser vítima de preconceito. E, vamos ser sinceros, eu prefiro mil vezes ser “rotulada” de autista do que todos esses outros rótulos nocivos que me perseguem até hoje.

Porque as pessoas não discriminam o autismo em si – pelo menos, não de forma explícita. Se você perguntar a qualquer pessoa, a maioria delas não dirá explicitamente que deseja excluir os autistas da sociedade (bom, algumas até dizem sim). O preconceito é mais sutil e escondido do que explícito. As pessoas discriminam os comportamentos autistas. Elas discriminam a falta de contato visual, a fala em tom monótono, o andar diferente, o hiperfoco exagerado, a dificuldade do filtro social, os movimentos repetitivos. Mesmo sem saber que tudo isso está relacionado ao autismo em si, elas vão continuar achando estranho, vão continuar excluindo.

Por exemplo, na adolescência, as pessoas não me viam como autista com interesse especial, me viam como a menina estranha obcecada por Beatles, que não sabia falar de outra coisa. “Nossa, que chata, vamos excluí-la por isso e falar mal dela pelas costas”.

Portanto, gente, vamos pensar melhor. Vamos começar a eliminar esse preconceito na nossa própria casa. Parar de sentir vergonha do autismo e aceitar a pessoa autista como ela é, inteira. Aos pais: ao invés de ensinarem seu filho a esconder quem é, a sentir vergonha de ser autista, ensine ele a reconhecer pessoas intolerantes, e como se afastar delas. Esse é um aprendizado muito mais útil do que o de baixar a autoestima da pessoa.

Autistas estão em todo lugar. Quanto mais as pessoas tiverem consciência de que a gente existe e que estamos ao lado delas, mais o caminho para a verdadeira inclusão será facilitado. Esconder quem somos só gera mais exclusão. Por isso a importância de se revelar, de considerar o autismo como uma identidade, muito além de um simples rótulo.

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