Assexualidade e autismo | opinião | Ana Cândida

Fotografia artística com fundo preto. Na lateral esquerda, boneco com o corpo amarelo e uma mão na cor cobre atravessando o centro do seu tórax. No lugar da cabeça, um recipiente de vidro com água, refletindo as cores azul e roxo. Dentro do recipiente, uma cabeça de bronze sorrindo e deitada, na horizontal, para a direita. De acordo com a artista Ana Cândido, esta fotografia passa “a ideia de tentar se encaixar num molde de vidro, simbolizando as imposições sociais

Assexualidade e autismo | opinião | Ana Cândida

Foto em preto e branco de Ana Cândida, ela usa óculos quadrados grandes e sorri com a mão posicionada na cabeça.
Ana Cândida é mulher autista, fotógrafa autoral, escritora e assistente administrativa em Teresina-Pi.

Na assexualidade, a ausência ou baixa frequência de atração sexual/física não impede, necessariamente, a prática de atividades sexuais. No entanto, o interesse pode ser bastante reduzido, ou melhor, não fazer parte das prioridades do relacionamento amoroso. No caso de pessoas autistas assexuais, pode haver questões sensoriais que dificultam contato físico, mas o que as coloca na esfera assexual é exatamente a questão da atração física inexistente ou esporádica.

Vale lembrar, dentro dos parâmetros da nossa sociedade hiperssexualizada, que sexo faz bem para saúde para quem gosta de sexo. Maçã faz bem para a saúde para quem gosta de maçã. Do contrário, provoca ânsia de vômito! Cooptar pessoas à manifestação de comportamentos ditos “corretos” trata-se de pura violência.

A herança do patriarcado impôs o modelo cis-heteronormativo como padrão de conduta humana em relação às regras para relações afetivas ou sexuais. Adornar, ainda nos dias atuais, segmentos da estrutura social com fragmentos profundos do molde colonial, trata-se de retrocesso explícito.

Nesse contexto, as indagações que emergem no contexto assexual provam que preconceito e desinformação caminham de mãos dadas, e, ainda, impactam, negativamente, pessoas que estão lutando para quebrar paradigmas abusivos de conduta.

Questionam, por exemplo, sobre a legitimidade da nomenclatura “assexual” ao ser usada para designar pessoas que fazem sexo e têm libido ou sentem atração sexual, mesmo que rara. Ora, assexualidade diz respeito à limitada ou ausente atração sexual que certos humanos apresentam. “Não significa, entretanto, que não somos humanos”! – diriam, certamente. Mesmo os assexuais estritos possuem libido. Não sentir atração por outrem, ou ainda que aconteça raramente, não diminui os traços humanóides de alguém. Daí surge mais um questionamento: Por que, afinal, há a nomenclatura específica “Assexual”?

Ora, é uma questão de visibilidade e representatividade. Não estar dentro do padrão social dominante exige tais terminologias. O “nome” designa, antes de tudo, quem somos. Incorporá-lo permite a emergência da identidade. Certas preleções equivocadas sobre a sexualidade de outrem só servem para dirimir a liberdade de expressão, obrigando muita gente a forçar determinadas performances sociais.

Besuntar uma fôrma social de paradigmas retrógrados, traz à tona um molde/papel “bem traçado”, que deve ser cumprido ou “vestido” fielmente, passando por cima das sutilezas que compõem individualidades. Já somos bombardeados, cotidianamente, com ditames sociais rígidos, sendo prensados sobre uma parede de tijolos simbólicos nada amenos, que apenas contribuem para a manutenção de um status quo ilusório, tão caro às franjas da sociedade.

Está certo, obviamente, que rótulos mal empregados podem minimizar as possibilidades de reinvenção/desconstrução de uma identidade. Contudo, apropriar-se de terminologias que atribuam a si um lugar de fala, e, por conseguinte, um verbo que lhe descreva, é empoderador. Nós somos seres pensantes, em constante transformação. Desconstruir conceitos sobre si é um caminho natural. Estranho é ser sempre a mesma coisa!

Resignificar a ideia de identidade, costumeiramente enquadrada num padrão fixo, herdado do período colonial, onde cada um exerce um papel “encaixotado” e bem definido, engendra a possibilidade do ser humano assumir papeis variados, performando livremente, conforme sua própria visão de si. Afinal, podemos ver, ouvir, sentir, desejar, comunicar de formas variadas… “Ser” é livre agência!

Performamos de acordo com nossas concepções e crenças que pululam em conformidade com as nossas vivências. É mais uma questão psicossocial do que biológica pensar na real visão de si. Não há certezas absolutas quando olhamos no espelho. O que vemos é uma projeção da própria imagem, dotada de consciência egóica, afetada, contudo, pelo inconsciente, pegando como parâmetro a simbologia psicanalítica.

O inconsciente prega peças traiçoeiras, congeminadas à noção rígida de sexualidade, ainda presa aos traços sociais, severamente impositores de conteúdo recalcado. Moldam-se humanos cheios de entraves comportamentais, atormentados pelo fantasma da punição ideológica, e da própria auto punição. O vislumbre da manifestação da assexualidade torna-se prisão. Pensar fora do caixote simbólico ao qual fomos submersos impetuosamente é ato revolucionário urgente.

É preciso resistir!


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