Autistas e a vida em comunidade | Opinião | Miguel Souza

Beatriz Souza falando ao microfone em uma palestra

Autistas e a vida em comunidade | Opinião | Miguel Souza

Miguel Souza sorrindo

Miguel Souza é autista, estudante de Psicologia, estagiário de Psicologia na Casa da Esperança, ativista pela neurodiversidade, membro da ABRAÇA e coordenador do grupo de autistas Neurodiversos.

Neurodiversidade é a noção de que condições neurológicas diferentes do “padrão” são variações naturais, ou seja, são parte da diversidade humana. Elas não se devem a uma tragédia, um “desequilíbrio cerebral” ou a uma “limitação”. São apenas conexões neurais diferentes.
Essa noção é importante, pois faz com que aceitemos as pessoas autistas como parte da nossa sociedade, que podem até contribuir para a mesma. Faz com que valorizemos os comportamentos autistas, e deixemos os autistas viverem em comunidade sem curá-los ou tentar transformá-los em neurotípicos. A neurodiversidade não nega a adoção de tratamentos para autistas. Afinal, não são apenas autistas que precisam de tratamentos – até porque neurotípicos também fazem terapia, tomam medicação, precisam de ajuda nos estudos, etc. O que a neurodiversidade diz é que, ao invés de os tratamentos servirem para “consertar” os autistas, ou tentar fazer com que eles “saiam do espectro”, ou com que fiquem “indistinguíveis dos pares”, os tratamentos devem ser utilizados de modo a estimular a autonomia, independência e comunicação dos autistas, inserindo-os cada vez mais em comunidade – de forma confortável a eles – sem que, para isso, tenha que eliminar sua identidade autista ou suprimir seus comportamentos autistas.
Isso significa dizer a pessoa autista pode e deve ter o direito viver em comunidade a partir do que acha melhor para ela. Não é necessário que tente se disfarçar de neurotípico. Ela pode, por exemplo, querer se isolar no final de semana, recusar convites de ir às festas e bares. Pode não querer engajar em certas situações sociais que o sobrecarregariam, simplesmente para não parecer “antipática”. Pode exercer do seu direito de descanso das atividades após ter crises. Pode fazer stims (estereotipias) livremente, sem que isso atraía olhares e comentários maldosos dos outros. Deve ter o direito de formas de comunicação alternativa, afinal, a fala oralizada não é a única que existe, e a comunicação diversificada deve ser aceita e estimulada. Autistas precisam de adaptações no ambiente de ensino (e isso vale para o ensino superior), e também no ambiente de trabalho, bem como em ambientes diversos de lazer e cultura. Assim como os cadeirantes precisam de adaptações arquitetônicas, como as rampas, para poderem acessar certos locais, autistas também precisam de adaptações acústicas, de iluminação, dentre outras, para atender as suas dificuldades sensoriais. Afinal, como um autista irá achar agradável frequentar um local que lhe dê sobrecarga sensorial?
E o mais importante: autistas não devem ser segregados ou isolados da comunidade. Antes, eu achava que isso acontecia apenas no século passado. Mas, infelizmente, a institucionalização de autistas ainda é bastante comum nos dias atuais, por isso a campanha de 2018 da Abraça foi feita. Autistas institucionalizados são forçados a viverem presos em instituições, afastados da família e das pessoas da sociedade, em ambientes sem condições mínimas de higiene, estando mais vulneráveis a situações de violência e abuso sexual, físico e psicológico. Aliás, isso não se limita apenas à institucionalização. Muitos autistas vivem presos em casa com a família, pois a mesma tem receio de sair com seu filho para lugares de lazer (o que não é culpa da família, mas sim da sociedade que não consegue se adaptar às necessidades dos autistas). Até mesmo autistas com menor nível de dependência podem viver isolados em casa, longe das ocasiões sociais, pois estas lhe atormentam muito. Sendo assim, as amarras feitas pela sociedade podem se manifestar de forma explícita ou implícita.
Muitas famílias são atormentadas pelos seguintes questionamentos: “o que meu filho vai ser quando estiver mais velho? Será que ele conseguirá ser independente? Quem irá cuidar dele quando eu morrer?” Esses questionamentos são genuínos, e o fato eles existirem já mostra o quanto que nossa sociedade não está preparada para receber e acolher as pessoas autistas. Seus futuros se tornam duvidosos, sua autonomia é vistas como algo impossível de ser alcançado. Nós não estamos preparados para inserir os autistas em comunidade. Isso acontece porque, quando se fala em “inserir o autista em comunidade”, muitas pessoas pensam que o objetivo é mudar os comportamentos dos autistas – no sentido de eliminá-los –, mas não enxergam a verdadeira causa de tantos problemas. É só você atentar ao número imenso de estudos e intervenções inteiramente voltadas a mudar os comportamentos dos autistas, de fazê-los aprender a se comportar o mais parecido com um neurotípico possível – ou ainda, no extremo, de achar uma cura para o autismo. O foco está sempre no autismo, no indivíduo autista. Agora, quantos são feitos para ensinar aos neurotípicos como incluir os autistas em grupo? Se os cientistas investissem menos tempo e dinheiro tentando achar uma cura para o autismo, e fizessem mais pesquisa sobre como incluir o autista na sociedade, os problemas dos autistas diminuiriam consideravelmente – em qualquer grau que o autista esteja.
Parafraseando Fernanda Santana, presidente da Abraça e autista: “se você acha que seu filho não dá conta de usar o transporte público, vamos mudar o transporte público. Se você acha que hoje o seu filho ou filha não recebe o atendimento adequado no CAPS ou na Escola Regular, vamos mudar o CAPS e a Escola Regular. Se você acha que seu filho não tem condições de acessar o Mercado de Trabalho, vamos mudar as condições do Mercado de Trabalho. (…) Para aqueles que precisam ser abrigados, moradias menores e inseridas na comunidade, como as Residências Inclusivas ou Terapêuticas, são alternativas que seguem esse mesmo raciocínio e substituem a necessidade dos abrigos manicomiais e hospitais psiquiátricos. Precisamos investir nelas”. Então, se estamos preocupados com o futuro dos autistas, devemos lutar a verdadeira inclusão destes na comunidade, para que as residências terapêuticas sejam opção para autistas de grau 3, para que formas de comunicação alternativa sejam oferecidas com mais frequência.
A solução é lutar por uma mudança social, não para tentar eliminar os autistas da sociedade ou transformá-los em neurotípicos. Isso nos dá a impressão de que estamos fazendo algo bom e genuíno para inclusão dos autistas, quando, na verdade, só estamos atrasando a verdadeira inclusão. Devemos voltar nossos olhares para o verdadeiro problema e mudar isso.
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