Decreto nº 10.502/2020: confundir para aprovar?

Decreto nº 10.502/2020: confundir para aprovar?

Foto colorida de Luiz Henrique. Ele está de frente, tem pele branca. Usa cabelos semi presos, lisos médios e castanho escuros, um pouco abaixo dos ombros, Usa, também, barba e bigode. Veste camisa quadriculada, em preto e branco. O fundo fotográfico é branco, mas aparece parte de uma prateleira branca suspensa, com objetos amadeirados em cima.

Prof. Dr. Luiz Henrique Magnani é bacharel e licenciado em Letras (UNICAMP), mestre em Linguística Aplicada (UNICAMP) e doutor em Letras (USP). É autista e membro da ABRAÇA.

Em defesas ao retrocesso que se configura a política segregacionista contida no Decreto  nº 10.502/2020, muita retórica tem sido jogada boca afora. Dentro disso, chama a atenção posturas e falas tais como a problematizada por Rita Louzeiro, pedagoga, mulher autista e membra da Abraça. Referindo-se a uma entre várias falas de Nídia Regina Limeira de Sá na reunião extraordinária do Conade ocorrida em 06/10/2020, a de que “O direito de estar em todos os lugares não é maior do que o direito de estar no melhor lugar”, Rita pondera com precisão que essa “é uma ideia perigosa“.

Rita Louzeiro aponta que: “É uma frase que resume bem o que temos sofrido de exclusão. Decidem que o melhor lugar é o segregado, isolado, longe de todo mundo. Dizem que fazem isso para o nosso bem porque é o melhor lugar.” E, entre outras questões importantes, Louzeiro ainda considera: “Essa frase, dita com tanta empolgação pela autora, me causa revolta porque justifica a violência da segregação com um falso cuidado.”

Entendo que as considerações de Rita já bastam para questionar a falta de critérios na definição daquilo que Nídia considera como “melhor” nesse jogo retórico apresentado ao Conade. Gostaria, no entanto, de avançar em alguns outros aspectos dessa discussão que também me parecem importantes e que, a meu ver, aliam-se às preocupações de Louzeiro.

Gravura com um conjunto maior denominado "Todos os lugares" dentro do qual se inserem vários outros conjuntos. Um desses vários outros conjuntos é denominado de "Melhor lugar" com um complemento entre parêntesis contendo o texto "na opinião da autora". Os demais conjuntos, alguns interseccionando-se entre si, estão todos categorizados sob a alcunha de "variados outros lugares".

Para tanto, retomo a frase em questão e busco colocá-la inicialmente em análise de um ponto de vista lógico e textual. Afinal o que pode ou não significar “o direito de estar em todos os lugares não pode ser maior do que o direito de estar no melhor lugar”? Nesse vaivém de palavras, caso a gente leia ou ouça sem atenção, pode até dar a impressão de que algo sério, importante ou bonito foi dito. Mas não é difícil demonstrar que do ponto de vista lógico e textual essa jogada de efeito não faz o menor sentido.

Ora, se houver o direito de estar em todos os lugares, está garantido por si só o direito de estar em qualquer lugar, incluindo o lugar que porventura algum de nós creia ser o ‘melhor’. Ou seja, além da falta de transparência do que pode vir a ser ‘o melhor lugar’ e da falta de transparência a respeito de quem definiria qual seria o melhor lugar – obscuridades que ajudam a gerar confusão numa fala pretensamente bonita – contradições podem ser detectadas por qualquer iniciante do estudo de lógica. Afinal, ‘o melhor lugar’ está necessariamente contido no grupo ‘todos os lugares’”. Literalmente desenhando a questão, é possível observar isso:

Diante da falta de lógica do raciocínio, que não consegue se sustentar textualmente por conta de sua contradição, alguns podem chegar a pensar que se trata de alguma dificuldade de pensar ou organizar as ideias. Desconfio não ser esse o caso, pois não é uma frase falada no calor do momento apenas, mas uma frase já repetida em outras ocasiões. 

A propagação da desinformação parece se alinhar a uma prática comum do governo vigente, o chamado ‘confundir para governar’ (link 1; link 2). Algo que, no presente caso, inicia-se pelo próprio nome do decreto, que diz “instituir a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida”, conforme já aponta Alexandre Mapurunga em um vídeo a respeito. Como pontua o secretário-geral da Abraça, é um nome ‘que pode parecer bonito’ mas cujo conteúdo ‘vem para destruir, para retroagir uma série de direitos que ao longo dos últimos trinta anos o movimento de pessoas com deficiência e o movimento de luta pela educação inclusiva vêm conquistado”.

Nesse sentido, há o esvaziamento de análises sérias e comprometidas com o processo em troca de retóricas vazias e pouco sustentáveis logicamente, em uma situação análoga aquela que a tirinha a seguir pode ajudar a ilustrar:

tirinha contendo quatro quadrinhos e assinado por Ryot. No primeiro quadrinho, uma pessoa de pé fala a outra pessoa agachada manuseando uma bomba atômica contendo um fio azul e outro vermelho: segundo meus conhecimentos baseados nos meus anos na universidade estudando a engenharia das bombas atômicas, você deveria cortar o fio azul. No segundo quadrinho, uma terceira pessoa chega gritando “VERMELHO”. No terceiro quadrinho, a pessoa que está manuseando a bomba olha para a que havia falado no primeiro quadrinho e responde: “você parece ter razão, mas ele gritou mais alto”. A terceira pessoa, que havia gritado em quadrinho anterior, dá outro grito, em resposta: “ISSO AÍ”. No quarto quadrinho há a cena da bomba explodindo, e a escrita de uma onomatopeia: BWOOOOOSHHH.
Tirinha contendo quatro quadrinhos e assinado por Ryot.

Além disso, essa defesa insistente pela aprovação desse decreto, ainda que já tenha sido considerado inconstitucional por leituras jurídicas mais sérias a respeito (ver, por exemplo, essa análise), passa a levantar suspeitas em relação aos interesses reais envolvidos nesse processo. Afinal, se notarmos a quantidade movimentos e organizações repudiando o decreto e se mobilizando contra – tal como recentemente o fizeram os conselhos de Psicologia e também o de Fonoaudiologia – nota-se que é uma aprovação que não possui a representatividade necessária para essa aprovação de cima para baixo. Nessa chave interpretativa, insisto, não parece haver incoerência em falas que defendam tal decreto – confuso, cheio de ambiguidades e de brechas para o retorno a uma lógica manicomial – a partir de expedientes como os aqui criticados.

O perigo de nos distrairmos com esse tipo de estratagema do ‘confundir para governar’ possui vários desdobramentos. Gostaria de finalizar o presente texto levantando apenas dois entre eles, para mostrar como isso pode operar como uma armadilha eficaz. De um lado, essa tática da confusão e da desinformação consome o tempo de quem está disposto a fazer uma leitura séria dos decretos e das proposições vindas do governo, agindo assim do modo que se espera de cidadãos quando a democracia e a constitucionalidade das ações governamentais estariam sendo preservadas – o que não está ocorrendo.

Por outro lado, as palavras bonitas e as retóricas ambíguas permitem que defensores do decreto autoritariamente imposto empurrem essas mesmas pessoas para um grupo difuso de uma suposta ‘radicalidade’. Isso, uma vez que o decreto possui como ‘isca’ termos e frases isolados que podem dar a impressão de algo que é bom, mas que camuflam a problemática mais profunda a ele ligada: o desrespeito à postura consolidada pelos movimentos das pessoas com deficiência em relação à educação inclusiva; o desrespeito à própria ideia de uma educação inclusiva; o autoritarismo e falta de diálogo com o qual tal decreto se impõe; sua inconstitucionalidade, entre muitos outros aspectos.

É ingênuo pensar que todo ato segregacionista estará explicitamente assumido como tal. É estratégica a cooptação da opinião pública nesse e em outros casos, intencionalmente bombardeada com desinformação e ambiguidades. Fiquemos em alerta em relação a esse tipo de estratégia!


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