Manifesto da Neurodiversidade Interseccional Brasileira

Manifesto da Neurodiversidade Interseccional Brasileira

Versão em linguagem simplificada

Nós estamos aqui para fazer uma mudança profunda, neurodiversa, interseccional, anticapacitista e antidiscriminatória no modo como pessoas autistas são vistas e tratadas em nosso país. O autismo, assim como as outras deficiências psicossociais e intelectuais, não é um defeito neurológico. As deficiências são expressões da diversidade humana. E nós, pessoas autistas, somos atravessadas por outros marcadores sociais, como raça, gênero, classe social e sexualidade. Tudo isso é importante.

Vivemos em comunidades tradicionais, quilombolas e ciganas, em  áreas rurais, vilas e pequenas cidades. Somos pessoas migrantes, refugiadas, em situação de rua, pobres,  encarceradas, institucionalizadas, e somos também líderes comunitários e gente da classe trabalhadora. Somos pretas, faveladas, periféricas, não-brancas, LGBTQIA+, indígenas, povos de terreiro e pessoas com outras deficiências. Usamos os mesmos serviços que os demais e estamos em todos os lugares.

Enquanto essas facetas múltiplas não forem reconhecidas, continuaremos sofrendo as opressões sistêmicas que nos marginalizam e nos subjugam. Defendemos que não é possível lutar por justiça sem lutar pela neurodiversidade intersecional!

Nós estabelecemos uma aliança com os ativistas da luta antimanicomial e da luta antirracista, que há muito tempo questionam a violação das liberdades básicas e dos direitos fundamentais de quem é usuário da psiquiatria, que, na sua maioria, são corpos pretos e marginalizados. A luta antimanicomial e antirracista nos mostra que outros modelos de cuidado, de garantia de direitos e de exercício da cidadania são urgentes!

Nós, autistas, somos pessoas com deficiência e devemos exercer todos os nossos direitos. Um dos princípios gerais da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, que, no Brasil, tem status constitucional, é o respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiências como parte da diversidade humana e da humanidade. Esse respeito inclui considerar que diferentes pessoas com deficiências têm diferentes demandas. Essas demandas não devem ser usadas para medir a competência para existirmos. Somos todos igualmente dotados da mesma dignidade, independentemente de precisarmos de maiores apoios ou adaptações. Isso significa que uma maior demanda de apoios não desqualifica a autonomia de uma pessoa, nem seu exercício de direitos.

Acreditamos também que a luta pela neurodiversidade interseccional deve ser engajada com as demais lutas contra opressões sistêmicas. Não devemos pensar nas deficiências – entre elas, o autismo – como condições abstratas. Esse tipo de pensamento usurpa nossas condições de participação nas diversas esferas da vida social e política. Nós, pessoas autistas, existimos e não somos anjos. Nossa existência não deve ser medida através do nosso diagnóstico.

Somos pessoas reais vivendo vidas reais, com demandas diversas, em diferentes contextos. É isso que deve ser levado em conta na criação de políticas públicas para que todos nós possamos ser contemplados.   

Além disso, para pensarmos equidade e não-discriminação, precisamos ter em mente as múltiplas possibilidades de opressão e os múltiplos marcadores sociais que podem articular as nossas relações. Igualdade não significa que não somos diferentes, mas sim que nossas diferenças não devem servir para nos inferiorizar ou para nos impedir de gozar de direitos. 

Muitos profissionais consideram o autista como alguém que precisa ser “normalizado”. Esta visão tem repercussão na maneira como nossas famílias e como a sociedade nos acolhem, nos percebem e nos entendem. Isso, por vezes, dificulta o processo de aceitação e, consequentemente, afeta a própria maneira como nós nos entendemos. Nossa autoestima e nossas oportunidades são frequentemente construídas segundo a noção de que somos inferiores. Mas todo mundo tem o direito de ter orgulho de sua existência, e nós exigimos o mesmo direito.

Abandonamos em definitivo os termos separatistas, como “Síndrome de Asperger” e “Autismo leve vs. Autismo Severo” como uma marcação do nosso posicionamento anti-eugênico. Nós temos o direito de sermos incluídos em nossas comunidades em igualdade de condições com os demais. Todos nós. Porque os Direitos Humanos são para todas as pessoas, sem exceção.

Reivindicamos, portanto, que as políticas, produtos e serviços sejam oferecidos de acordo com as nossas condições neurodiversas, respeitando quem somos, dentro de todas as nossas diferenças.

Ainda hoje, no Brasil, autistas que estão nas interseções com outros marcadores sociais têm sido marginalizados na formulação de políticas públicas e de serviços. E falamos do nosso país, da nossa realidade, mas o mesmo também se aplica a outros lugares do mundo. Essa é uma situação que tem, há muito tempo, gerado a nossa exclusão de processos decisórios e da vida em sociedade. Por isso, reivindicamos o seguinte:

  1. A nossa participação direta em todos os processos decisórios e de elaboração de políticas públicas. Para tanto, precisamos que tais processos sejam acessíveis e desenhados interseccionalmente, de forma a considerar, desde o início, nossas opiniões.
  2. A garantia de apoios e adaptações razoáveis, inclusive para o pleno acesso à justiça. E o atendimento integral das nossas demandas de apoio, para que possamos participar socialmente de forma plena e não-segregada. Nossas necessidades não são homogêneas e devem ser consideradas a partir de nossas diferentes raças, gêneros, classes e sexualidades. 
  3. A elaboração de programas de formação profissional de pessoas autistas segundo a perspectiva da neurodiversidade e da interseccionalidade. Esses programas devem assegurar o desenvolvimento de nossas potencialidades, sem invisibilizar nossas diferenças ou deficiências.
  4. A estruturação de sistemas educacionais inclusivos, não-segregados, que considerem a neurodiversidade e a interseccionalidade de maneira transversal.
  5. A garantia de padrão de vida e proteção social adequados e sustentáveis. Devem ser assegurados programas de inclusão social que não nos discriminem e que considerem as múltiplas formas de discriminação que podemos experimentar.
  6. O atendimento a pessoas em situações de risco e em emergências humanitárias. É necessário garantir a integral proteção social de pessoas autistas que foram atingidas pela crise deflagrada pela pandemia da COVID-19. 
  7. A garantia de condições de vida independente e a participação efetiva na comunidade. Para tanto, as residências inclusivas e assistidas, bem como outros programas para apoio da vida independente, devem promover o engajamento efetivo de todas as pessoas autistas que delas necessitarem, inclusive quando se tratar de pessoa não oralizada, que faça uso de recursos da comunicação alternativa e/ou com grande demanda de suporte para a vida diária.
  8. O fornecimento de apoios adequados aos autistas com maiores demandas de suporte. Esses apoios não devem ser substitutivos da tomada direta de decisões, considerando o resguardo da autonomia do sujeito apoiado. Para isso, devem ser fomentados, dentre outros: programas de tecnologia assistiva e de comunicação aumentativa e alternativa (CAA); mecanismos de emprego apoiado; profissionais de apoio educacional; assistentes pessoais para a vida independente; e estratégias jurídicas de tomada de decisão apoiada.  
  9. A garantia dos nossos direitos existenciais, incluindo os direitos reprodutivos, os direitos sexuais e os direitos afetivos. Nossos diferentes modelos de relacionamento não devem ser discriminados, e devemos ter acesso a um planejamento familiar integral e equitativo.

Não há revolução sem neurodiversidade e sem interseccionalidade. Nossas vozes devem, unidas, gritar: NADA SOBRE NÓS SEM NÓS!

Autistar é Resistir 

ABRAÇA – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA PARA AÇÃO PELOS DIREITOS DAS PESSOAS AUTISTAS