Manifesto: Autistar é resistir! Identidade, cidadania e participação política

Manifesto: Autistar é resistir! Identidade, cidadania e participação política

Descrição da imagem: Desenho do infinito nas cores do arco-íris, junto de um megafone. Ao lado, o texto: Autistar é Resistir! Identidade, cidadania e participação. Fim da descrição.
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) quebrou diversas barreiras para o Movimento das Pessoas com Deficiência. A despeito disso, nós, pessoas autistas, ainda
não temos nossa voz reconhecida como sujeitos políticos plenos de direitos. Para nós, o lema “Nada Sobre Nós Sem Nós” ainda não se tornou realidade.

Nós, pessoas autistas, somos frequentemente excluídas dos processos decisórios e da participação pública, mesmo quando os temas em pauta são de nosso interesse ou afetam diretamente nossas vidas. Continuamos um dos grupos menos representados politicamente, seja através do movimento associativo da sociedade civil, seja na política partidária institucional.

É comum que a participação fique restrita a pais ou profissionais de diversas áreas. As organizações representativas, em geral, não contam com pessoas autistas em sua diretoria. São poucos os eventos que oferecem oportunidade de fala para as pessoas autistas e que preparam o ambiente para essa participação, oferecendo condições mínimas de acessibilidade e o suporte necessário.

Mesmo se configurando discriminação baseada na deficiência, os termos “autismo” e “autista” são usados frequentemente por jornalistas, autoridades e figuras públicas como adjetivo para ofender opositores no meio político e jurídico, reforçando estereótipos e preconceitos que desqualificam nossa participação efetiva.

É também usual, tanto na mídia quanto no meio político, a objetificação das pessoas autistas para causar inspiração às não autistas, sendo aquelas tidas ou como  “exemplos de superação” ou mesmo como um “fardo” para, assim, exaltar, vezes o “sofrimento”, vezes a “gana” de pais e mães que lidam com filhos autistas, sem apontar as verdadeiras causas: a desinformação, o capacitismo, a psicofobia e a ausência de Políticas Públicas para apoiar o desenvolvimento e a autonomia das pessoas autistas.

Os contextos e as múltiplas identidades autistas são sistematicamente ignorados. Entre nós existem mulheres, negras e negros, indígenas, LGBTQI+, com outras deficiências, que moram na periferia, em situação de rua, institucionalizadas, na zona rural ou em comunidades tradicionais, entre outros. Não falar sobre isso é esconder a diversidade que nos caracteriza e mascarar uma série de necessidades não atendidas daqueles dentre nós que estão sujeitos a maior vulnerabilização e à discriminação múltipla.

Há ainda os que demandam maior apoio e suporte e as pessoas autistas não-oralizadas, que têm muito menos chance de exercer seu direito à participação na vida pública e política. Essa é uma parcela do nosso grupo que, frequentemente, têm suas vontades e preferências ignoradas por completo e, na prática, tem sua capacidade jurídica negada, não havendo em nosso país nenhuma política para prover serviços de assistência pessoal e apoio à autonomia, ou suficiente acesso às tecnologias de comunicação alternativa e aumentativa.

Em que pese as dificuldades citadas, nós, pessoas autistas, no Brasil e no mundo, por meio das redes sociais e além delas, temos estabelecido canais de encontro para discutirmos sobre o significado de ser autista, nossas particularidades, as barreiras e as dificuldades que encontramos, nossas prioridades, o contexto em que vivemos, o preconceito e a violência que sofremos. Desses encontros, surge um processo de ressignificação e construção da própria identidade autista, não mais como algo a ser corrigido ou curado, e sim como condição neurodiversa de sujeitos políticos que se levantam  para denunciar o capacitismo, a psicofobia e para reivindicar suas pautas e seu lugar no movimento de luta por direitos.

A Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas (Abraça), desde sua fundação, em 2008, tem o protagonismo e a participação ativa de pessoas autistas em sua diretoria, em seus processos decisórios, eventos e campanhas. Nossa atual presidenta, Fernanda Santana, é uma mulher autista. Desde 2016, realizamos diversos encontros organizados e protagonizados por pessoas autistas, incluindo pessoas não-oralizadas, com diferentes demandas de suporte e contextos sociais.

Não se trata de desconhecer o lugar de fala legítimo de pais e profissionais que atuam na área, mas de reivindicar que, quando não é permitido aos autistas falar sobre o que lhes afeta nem participar dos processos de decisão das entidades que lhes representam, seus direitos mais fundamentais estão sendo violados.

Dessa forma, é importante relembrarmos nosso compromisso com a Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) e seu Protocolo Facultativo:

  • O respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e da humanidade. Este é quarto princípio da CDPD, que, no Brasil, tem status de norma constitucional. Todos somos diferentes, congregamos várias identidades em nós mesmos. Ninguém é só Autista. Somos seres humanos, em situações e contextos diversos, requerendo variáveis níveis de suporte. E todos somos expressões da diversidade humana, com o direito de termos nossas múltiplas identidades respeitadas, incluindo a identidade autista.
  • O respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência e pelo direito destas de preservar sua identidade. Este é o oitavo princípio da CDPD, portanto também direito constitucional. Toda criança, autista ou não, tem o direito de ter sua identidade preservada e respeitada. Isso inclui não sofrer intervenções em relação a comportamentos que não causem dano, mas que as identifiquem enquanto autistas, como os stims, por exemplo. Da mesma forma, ferem esse princípio as intervenções que tem por objetivo unicamente induzir as crianças para um suposto “padrão de desenvolvimento normal” na ânsia de “curar” o Autismo.
  • Que sermos ouvidos é um direito nosso e uma obrigação do Estado. O artigo 4.3 da CDPD diz que, em todos os processos de tomada de decisão relativos às pessoas com deficiência, o Estado deve realizar consultas estreitas e envolver ativamente pessoas com deficiência, inclusive crianças com deficiência, por intermédio de suas organizações representativas. Além disso, o Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência considera que, para serem reconhecidas como tal, as organizações de pessoas com deficiência devem estar arraigadas, comprometidas e respeitar plenamente os princípios e direitos reconhecidos na CDPD. Elas também devem ser lideradas e dirigidas por pessoas com deficiência, e contarem com pessoas com deficiência nos cargos de tomada de decisão. Segundo o Comitê, a participação de familiares e cuidadores, quando necessária, deve estar voltada para apoiar as pessoas com deficiência a fim de que estas tenham sua própria voz e assumam o controle total de suas próprias vidas. (Comentário Geral da CDPD n. 7).
  • Que somos parte de nossas comunidades e que participar da vida pública e política é um direito nosso. O art. 29 da CDPD garante a todas as pessoas com deficiência o direito à participar da vida política e pública e obriga o Estado a garantir nossos direitos políticos, além das oportunidades de exercê-los em condições de igualdade com as demais pessoas, seja na política partidária (votando e sendo votado), seja participando e liderando as organizações da sociedade civil. O mesmo artigo responsabiliza o Estado por encorajar a formação e a filiação em organizações de pessoas com deficiência em todos os níveis (internacional, regional, nacional e local).

Com isso em mente, a Abraça convoca todas as organizações do poder público e da sociedade civil, a mídia, as lideranças políticas e comunitárias, a fortalecer e apoiar a luta pelo direito à participação na vida pública e política, em especial:

  • Garantir que pessoas autistas tenham oportunidade de participar de eventos, audiências públicas, conselhos, conferências e todos os espaços de participação democrática instituídos, com os apoios e adaptações razoáveis que forem necessárias;
  • Combater o capacitismo na mídia tradicional, nos espaços públicos e nas redes sociais, que se manifesta através de discriminação, preconceito e concepções equivocadas que desconsideram as pessoas autistas como parte da diversidade humana;
  • Assegurar que mais pessoas autistas possam participar dos processos de decisão das organizações da sociedade civil, com oportunidades de assumir posições de liderança;
  • Consultar as pessoas autistas, diretamente ou por meio de suas organizações, sempre da elaboração ou implementação das políticas que lhe dizem respeito;
  • Garantir o lugar de fala a pessoas autistas em entrevistas, matérias jornalísticas e reportagens na mídia, evitando o tom de pena e a objetificação.
  • Ampliar o acesso a tecnologias de comunicação alternativa e outras formas de apoio à autonomia individual, inclusive por meio de investimento em pesquisas e produção científica nacional;
  • Conhecer e comprometer-se com a CDPD, em todos os seus aspectos, atendendo às recomendações do Comitê em relação às melhorias solicitadas na legislação e na efetivação das políticas públicas sobre o tema;
  • Fortalecer o debate sobre “Tecnologias Assistivas, Participação Ativa” das pessoas autistas, tema da ONU para o 11º Dia Mundial pela Conscientização sobre o Autismo, com a realização de audiências públicas, palestras, fóruns e conferências sempre tendo pessoas autistas como protagonistas.

Assim, nós, pessoas autistas da Abraça, com o apoio de nossas famílias e redes de suporte, reivindicamos nosso direito de ser quem somos e de nos auto-representar. Pessoas autistas são cidadãs plenas, parte da diversidade humana, com direito à participar da vida pública e política. Ser autista no Brasil tem sido um ato de resistência à negação de direitos, ao preconceito, à falta de apoio e aceitação. É obrigação de todos não deixar ninguém para trás. Por isso, nos levantamos e dizemos: Autistar é resistir!

Brasil, 24 de março de 2019

Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas (Abraça)

#autistaréresistir

Saiba mais sobre a Campanha Abraça 2019:

Autistar é Resistir! Identidade, cidadania e participação