Pensando o autodiagnóstico e o autismo enquanto condição autodeclarada

Pensando o autodiagnóstico e o autismo enquanto condição autodeclarada

Ricardo Lugon sorrindo, usando óculos.
Ricardo Lugon é psiquiatra da infância e adolescência no CAPSI de novo Hamburgo e professor da faculdade IENH. Mestre em educação pela UFRGS e membro da ABRAÇA.  

Dedico esse texto incompleto e em construção à professora Luciana Viegas, com quem tanto aprendo e que tanto admiro.

Tenho acompanhado uma polêmica importante e uma série de ataques desnecessários a pessoas autistas defendendo a ideia de um autodiagnóstico. Alguns ataques envolveram misturas de racismo, capacitismo e sei lá o que… Pretendo debater (quase) brevemente esse tema …

Primeiro problema: Vejo que o termo diagnóstico tem se reduzido ao uso uma categoria, de uma classificação diagnóstica dentro dos dois principais manuais de classificação vigentes: a CID e o DSM. Recomendo essa leitura aqui que me ajudou muito. As críticas se dirigem então a uma “autoclassificação diagnóstica psiquiátrica”. Para uma afirmação tipo “Li que os critérios do DSM são tais e tais, reconheço eles na minha vida então eu me autodiagnostico como tendo autismo” as respostas vêm como “só médicos podem dar diagnóstico, cala a tua boca, você não estudou, você não é ninguém…”

Os sistemas de classificação psiquiátrica (CID e DSM basicamente) são ferramentas. Como qualquer ferramenta, elas têm uma história, elas têm utilidade limitada (um martelo, uma furadeira e uma frigideira podem ser muito úteis mas somente em um ou poucos contextos) e elas dependem que se conheçam o seu modo de funcionamento. Todas têm (ou deveriam ter) um manual de instruções. Eu não argumentaria que “somente tal e tal profissional podem usar as classificações” porque isso implicaria uma defesa corporativista de categoria profissional. Mas creio que o uso das classificações não é intuitivo e isso demanda conhecer o seu “manual de instruções”, saber os truques, as armadilhas, os vacilos mais comuns, os pontos onde elas não funcionam muito bem e as situações onde elas fazem toda a diferença. Penso que esse “manual” (e os macetes que nenhum manual diz) precisa ser desembrulhado e destrinchado, precisa ser lido criticamente, sua historia precisa ser contada não pelos ”vencedores” mas por gente que viveu impactos a partir de seu uso. Precisamos mais do que nunca contar as histórias das origens racistas, capacitistas, corporativistas e reducionistas de como as classificações são construídas. Senão a gente pode acabar achando que elas estavam na tábua dos 10 mandamentos lá do monte Sinai.

Segundo problema: Acreditar que “as classificações diagnósticas automaticamente indicam o tratamento”. Aprendi com as pessoas com deficiência e os pesquisadores do campo que deficiência se define na interação de impedimentos corporais com uma série de barreiras. Se você compreende o autismo somente como uma doença, então você provavelmente situa o problema todo na pessoa “portadora” e entenderá o tratamento como “cura” ou minimização do autismo. Aprendi a compreender o autismo como um modo particular e diverso de estar no mundo. “ah, mas você está romantizando o autismo, acha que a vida de um autista é fácil…” Aqui exige que a gente descole doença de sofrimento. Nem toda pessoa que está doente sofre, e nem toda pessoa que sofre está doente. No campo da saúde, a gente oferece cuidado a quem está sofrendo — e isto inclui, mas não se restringe a oferecer tratamento para algumas doenças. Esse texto aqui pode ajudar. Acredito que grande parte do sofrimento vivenciado pelos autistas está ligado à presença, à permanência e ao surgimento de novas barreiras. Barreiras de comunicação e barreiras de atitude envolvem uma série de comportamentos, modos de agir e pensar que reproduzem a opressão sobre as pessoas com deficiência. O silenciamento das pessoas autistas é uma dessas barreiras. E os manuais psiquiátricos não ensinam a reconhecer as barreiras, aliás, eles passam a anos-luz de distância da compreensão das barreiras. Quando as barreiras diminuem ou desaparecem, pessoas autistas sofrem bem menos!

Terceiro problema: Um diagnóstico implica várias camadas/funções. E elas muitas vezes acontecem juntas e fazem a discussão caminhar por lugares muito diferentes. Vamos lá:

– um diagnóstico PODE implicar um prognóstico, uma tentativa de adivinhar o futuro: o termo técnico “carcinoma esofágico metastático” traz consigo uma má notícia sobre o futuro

– um diagnóstico PODE indicar um tratamento: episódio maníaco do transtorno bipolar sugere o uso de estabilizadores de humor como intervenção farmacológica (mas pouco se diz sobre uma série de outras intervenções igualmente importantes)

– um diagnóstico PODE construir uma identidade (“recebi a classificação diagnóstica de autismo” à passo a me (re)construir/compreender a partir das coisas que li, pesquisei e conversei sobre autismo”

– um diagnóstico PODE até falar dos sentimentos do profissional sobre aquela pessoa (o uso indiscriminado de “borderline” para pessoas que produzem afetos ruins nos profissionais que as acompanham)

– um diagnóstico tem funções burocráticas. Ele pode ser a senha para você acessar ou não certo medicamento, cirurgia, benefício financeiro, isenção de impostos etc. O código errado no lugar errado dificulta a vida de muitas pessoas e pode produzir violações de direitos.

Há duas funções que as classificações diagnósticas exercem muito bem:

– Comunicação entre profissionais, como se fosse um idioma comum

– Gestão, planejamento e organização de um sistema de saúde.

Reparem nesse vídeo institucional da OMS a ênfase que eles dão a estes dois últimos aspectos.

Acho que já podemos ter uma ideia da confusão que envolve os muitos usos da palavra diagnóstico.

Onde eu acho que as classificações são muito frágeis no campo das deficiências e na saúde mental:

– para guiar um tratamento: dizer “autismo” geralmente abre as portas para um mundo de ofertas de abordagens, terapias, tratamentos centrados na pessoa “portadora” (e há disputas de mercado gigantescas e horrendas em todos os espectros teóricos) mas muitas vezes negligencia as barreiras. Fiz esse debate nesse texto aqui.

– para construir identidades: penso que os critérios de CID e DSM falam mais das coisas que falham, do que não funciona (sim, são capacitistas) do que afirmam como é uma pessoa autista. Aí fica o desafio de reconhecer o autismo como uma diversidade (eu tenho problemas sérios com o prefixo neuro, podemos debater em outro momento sobre ele) para a qual não há cura ou tratamento. Conhecendo pessoas autistas, só posso dizer que elas não cabem em manual algum!

A função burocrática produz grande angústia e demanda a profissionais e familiares. O tal “laudo” precisa aí ser ressignificado. Tenho insistido para que nós profissionais da saúde conheçamos as minúcias burocráticas de acesso aos diferentes direitos afirmados às pessoas com deficiência. Formulários, exigências, prazos… para que façamos um bom uso dessa dimensão burocrática, sem fazer laudos soltos e inespecíficos e sobretudo sem fazer as pessoas irem de um serviço para outro com informações vagas. Talvez eu seja meio paranoico com documentos e acho que eles precisam ter uma função clara e especifica. “Para os devidos fins” é um termo há muito tempo banido de qualquer documento que eu assine.

Queria fazer duas propostas aqui:

Ampliarmos a compreensão do que chamamos diagnóstico e não colarmos no “nome da doença”. Um bom diagnóstico é singular. É feito COM aquela pessoa, num trabalho de parceria, compreendendo o contexto, a história de vida, os impasses vividos, as expectativas, as experiências frustradas etc etc etc. Esse pra mim é um diagnóstico verdadeiro, completo e legítimo. Ele pode incluir a classificação mas não se reduz a ela. Nesse sentido eu não veria tantos problemas reconhecer o autodiagnóstico. Ainda fico um pouco incomodado porque acho que um diagnóstico bem feito precisa envolver uma relação de parceria, de encontro. E esse “auto” pra mim dá uma ideia de “fiz sozinho” meio coisa de liberal. Prometo todavia não patrulhar o uso do termo! Conversava uma vez com a Adrianna que a relação entre profissional e usuário pode envolver um cuidado ao sofrimento sem que necessariamente exista concordância ou não em relação a classificação. E a maneira como conduzir essa discordância precisa ser muito atenta para que não se produza silenciamento de nenhum dos dois lados. E isso às vezes é difícil pra caramba.

Pra gente falar de autismo, eu gosto de usar no plural. Autismos. O autismo da Luciana Viegas não é o mesmo do Ricardo Lugon, que não é (definitivamente) o mesmo do Alyson Muotri, que não é o mesmo da Temple Grandin, que não é o mesmo dos Jerusalinsky… Podemos pesquisar sobre o autismo, mas há algo que escapa às descrições e explicações e que demanda muito respeito de nossa parte.

Reconhecermos a legitimidade do autismo enquanto condição autodeclarada. Esse autismo vivo e polissêmico, escorregadio e intenso de cada pessoa autista. A luta das pessoas com deficiência é parte inseparável de todas as outras lutas no campo dos Direitos Humanos. Por isso defendo que esse reconhecimento não dependa da chancela de um “profissional habilitado” com carimbo e registro no conselho mas de alguem de dentro da própria comunidade. Nao pedimos a um branco que oficialize a negritude de alguem, nem pedimos a um cis-hetero que oficialize a condição LGBTQ+ de alguém. Autodeclaração é afirmação de vida. É uma violência exigir laudo para isso. É ferir de morte o “nada sobre nós sem nós”. Burocracia é papel morto.

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