MANIFESTO DE REPÚDIO AO DECRETO Nº 10.502/2020

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MANIFESTO DE REPÚDIO AO DECRETO Nº 10.502/2020

Nós, da Associação Brasileira para Ação pelos Direitos das Pessoas Autistas (ABRAÇA) contestamos e repudiamos fortemente o Decreto nº 10.502/2020, que institui a “Política Nacional da Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida”. 

Entendemos que o texto do decreto promulgado em 30 de setembro de 2020:

  • descaracteriza o sentido de inclusão estabelecido pelo art. 24 da Convenção Internacional de Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), tratado que tem status constitucional no ordenamento jurídico brasileiro (Decreto nº 6.949/2019);
  • representa um grande retrocesso em relação à Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva de 2008;
  • viola a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015), em seu art. 27, quanto ao direito à educação em um sistema educacional inclusivo em todos os níveis; 
  • legitima a discriminação em razão da deficiência, por meio da permissão de práticas excludentes que impedem e impossibilitam o reconhecimento, o desfrute e o exercício do direito humano à educação por parte de alunos com deficiência, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, (Cf. art. 4º, 5º da LBI).

Nossas principais discordâncias formais e materiais são as seguintes:

  1. O texto distorce conceitos e abre a possibilidade de se entender Inclusão como um paradigma educacional que pode ter resultados não benéficos (art. 2º, VI; art. 9º, III). Entendemos que a perspectiva educacional inclusiva é fundamental para o florescimento de uma sociedade democrática de direitos, pautada pela busca da igualdade e pelo acolhimento das diferenças. Nesse sentido, não existe inclusão não benéfica.  Se não é benéfico, não é inclusão. Todos os alunos, com e sem deficiência, se beneficiam diretamente da educação inclusiva.
  1. O decreto abre possibilidade de financiamento de classes especializadas em escolas ditas inclusivas (mas que não são) e de escolas especializadas (art. 2º, VI e VII). Em escolas inclusivas, todas as demandas educacionais são atendidas no contexto comum, do qual participam todos os estudantes, com e sem deficiência, compartilhando o mesmo ambiente e as mesmas experiências. É contraditório, nesse sentido, reconhecer que instituições inclusivas possam ter classes especializadas e que sistemas de ensino inclusivos sejam compostos por entidades especializadas. Segundo o Comentário Geral nº 4 do Comitê da ONU pelos Direitos das Pessoas com Deficiência, a educação oferecida em ambientes separados daqueles utilizados por estudantes sem deficiência é chamada de segregação.
  1. Há, no decreto, a sugestão falaciosa de que a família e a equipe multidisciplinar podem optar por uma “alternativa educacional mais adequada” (art. 3º, VI; art. 6º, IV, art. 9º, III) ao mesmo tempo que assume que definirá critérios para determinar quais são os “educandos que não se beneficiam das escolas regulares inclusivas” (art. 9º, III), revelando que não haverá, de fato, escolha. 
  1. Ainda assim, mesmo que fosse verdade, a ideia de que a comunidade escolar pode decidir pela inserção do estudante em classes ou instituições especializadas desvirtua o próprio sentido da palavra “inclusão”. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, “pais ou responsáveis têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino”(Lei nº 8069/1990, art. 55). Portanto, quando falamos de educação inclusiva, tratamos de um direito humano indisponível e inegociável.
  1. Ao falar de “educandos que não se beneficiam das escolas regulares inclusivas”, a política tira o foco das barreiras (arquitetônicas, comunicacionais, atitudinais, etc.) e atribui ao educando com deficiência qualidade de estar apto ou não a frequentar um determinado espaço. Isso demonstra claramente o alinhamento desta política ao modelo médico da deficiência, já superado desde a ratificação da CDPD. Não se pode exigir pré-requisitos para acessar o direito à educação. O direito já é nosso, independente de nossas características ou demandas. Quem precisa se adequar é a Escola, garantindo acessibilidade, adaptações razoáveis e apoio.
  1. O texto fala em garantir que o educando esteja em um “ambiente menos restritivo possível” (art. 9, III), deixando claro que a criação de ambientes restritos é uma possibilidade, a ser concretizada diante de uma suposta inadequação do estudante no contexto educacional comum. Além de tirar o foco das barreiras – estas, sim, criadoras da restrição de direitos e de oportunidades – a ideia de criar ambientes especiais ou restritos é contraditória à perspectiva da “Educação para todos”. Segundo essa visão, todos os estudantes devem aprender nos mesmos contextos educacionais, sendo a presença de cada um necessária e indispensável para o aprendizado de todos.
  1. O decreto descaracteriza o Atendimento Educacional Especializado como um serviço com vistas a assegurar a inclusão na escola regular, não limitando seu papel a complementar e suplementar, mas abrindo a possibilidade para que seja substitutivo do ensino regular (art. 4, III). Além do mais, lista, em seu art. 7º, uma série de centros educacionais destinados a atender deficiências específicas de modo segregado, onde, por exemplo, crianças autistas só conviveriam com outras crianças autistas. 
  1. Pessoas com deficiência têm direito à educação e à saúde de qualidade. O artigo 7º cita “outros serviços e recursos para atender os educandos da educação especial”, sem especificação, o que abre uma brecha para que verbas destinadas à educação financiem outros tipos de serviços não educacionais, inclusive terapêuticos. Um direito não se sobrepõe ao outro. Competências e espaços devem ser respeitados. Ter todos os serviços em um mesmo espaço nos remete às instituições totais, onde pessoas com deficiência são segregadas e têm negado o direito à vida em comunidade.
  1. Embora o Decreto fale em aprendizado ao longo da vida, não trata da transversalidade da educação especial desde a Educação Infantil até a Educação Superior, da Educação de Jovens e Adultos ou da Educação Técnica e Profissionalizante. Em vez disso, se limita a colocar a Universidade no papel de prestadora de serviços e de produtora de conhecimento sobre deficiência, o que não necessariamente inclui pessoas com deficiência e, portanto, interrompe o processo de inclusão que vem sendo desenvolvido nas instituições universitárias desde a implementação das cotas e dos núcleos de inclusão e acessibilidade dos estudantes universitários com deficiência. Dessa forma, desrespeita o art. 24 da CDPD, que garante o aprendizado ao longo da vida sem exclusão baseada em deficiência. Segundo o Comentário Geral nº 4 do Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o aprendizado ao longo da vida inclui acesso a pré-escola, ensino fundamental, médio e superior, treinamento vocacional e educação continuada, atividades extracurriculares e sociais. Tudo isso mediante a garantia de adaptações razoáveis. 
  1. O Decreto adota a definição de aprendizado ao longo da vida de que, como “a educação não acontece apenas no âmbito escolar”, o “aprendizado pode ocorrer em outros momentos e contextos, formais ou informais, planejados ou casuais, em um processo ininterrupto”. Embora seja verdade, não é papel do Estado. Com tal definição, portanto, o governo se desobriga em vez de regulamentar as provisões dispostas no art. 24 da CDPD que asseguram, por exemplo, acesso ao ensino superior em geral, treinamento profissional de acordo com sua vocação, educação para adultos e formação continuada, sem discriminação e com igualdade de condições.
  1. A consulta às pessoas com deficiência, por meio de suas organizações representativas, é essencial no processo de elaboração de legislações e políticas relacionadas às pessoas com deficiência. A ausência de tal consulta na construção desta Política fere o direito das pessoas com deficiência a participar em decisões que afetam diretamente as suas vidas, contrariando o que foi estabelecido pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (artigo 4.3), tornando o processo de construção desse decreto ilegítimo e inconstitucional. A consulta a organizações de classes profissionais, especialistas, familiares ou prestadores serviços não contempla a obrigação de consultar as organizações representativas de pessoas com deficiência, que, segundo o Comentário Geral nº 7, do Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, são aquelas lideradas, dirigidas e governadas por pessoas com deficiência.

Conclamamos os agentes públicos e políticos, os movimentos sociais, as pessoas com deficiência e seus familiares e toda a sociedade a lutar em defesa da educação inclusiva no Brasil.

Ressaltamos a importância do engajamento de todas as pessoas para resistir ao processo de desmonte da inclusão. Não nos resignaremos diante da perda dos inúmeros avanços civilizatórios que obtivemos em mais de uma década de consolidação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva!

#EscolaEspecialNãoéInclusiva

Brasil, 2 de outubro de 2020.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA PARA AÇÃO PELOS DIREITOS DAS PESSOAS AUTISTAS (ABRAÇA)


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